domingo, 21 de março de 2010

O dia em que a Portela se zangou com Paulinho da Viola

A Velha guarda da Portela costuma saudar seu padrinho Paulinho da Viola em suas apresentações com um samba que diz “Antigamente era Paulo da Portela, agora é Paulinho da Viola”. São versos que comparam Paulinho ao principal baluarte da Escola de Oswaldo Cruz, dando a dimensão da importância de Paulinho para a Portela.

Porém, em pelo menos uma ocasião, o clima ficou estranho entre Paulinho da Viola e sua escola de coração. Ocorreu que o compositor e poeta Hermínio Bello de Carvalho apresentou a Paulinho uma poesia que havia feito em homenagem à Mangueira e pediu ao amigo que musicasse. Melodia posta, a letra de Hermínio aliada à música de Paulinho resultou no belíssimo samba “Sei lá, Mangueira”, até hoje uma das maiores declarações de amor à Verde e Rosa.

O Samba tornou-se rapidamente conhecido e causou ciúme entre os portelenses. Como é que um ilustre compositor da Portela era capaz de fazer um samba tão bonito em homenagem à outra escola?

Paulinho da Viola viu-se então, na obrigação de fazer uma canção em homenagem à Portela para redimir-se. Começava a surgir aí outro clássico do gênero. O compositor conta no documentário “Meu tempo é hoje” que, quando criança, costumava assistir aos desfiles na Avenida Rio Branco. Foi a lembrança de um deles, em que a Portela invadiu a avenida com seu azul ao som da população que gritava “Portela, Portela... já ganhou!”, que inspirou-lhe a compor, tempos mais tarde “Foi um rio que passou em minha vida”, um dos sambas mais importantes da história da Portela e que serviu para acabar de vez com a polêmica.

No mesmo filme, o compositor narra a emoção de ver este samba sendo cantado pela primeira vez na avenida. No ano de 1970, Natal (presidente da Escola à época) pediu que “Foi um rio que passou em minha vida” fosse cantado antes do início do desfile. O samba foi acompanhado em coro pela multidão emocionada. Logo depois, a Portela desfilou com seu samba-enredo oficial daquele ano, porém, antes mesmo do desfile acabar, as primeiras alas voltaram a cantar o samba de Paulinho e foram até a Central do Brasil ao som de “Foi um rio que passou em minha vida”.

Quem saiu ganhando neste episódio foi sem dúvida o samba, que ganhou dois de seus maiores clássicos.

Sei lá, Mangueira. (Hermínio Bello de Carvalho/ Paulinho da Viola)

Foi um rio que passou em minha vida. (Paulinho da Viola)



quarta-feira, 17 de março de 2010

A baiana Mariene

Muito se fala na tal “nova geração do samba” e de sua relevância. Debates e mais debates são iniciados em todo tipo de mídia para discutir quem são os novos sambistas, qual a relevância desses novos artistas e para onde o samba está indo. E, apesar e com a contribuição desse tipo de discussão, o samba vai seguindo seu caminho, mantendo suas tradições e, simultaneamente, renovando-se. O samba não precisa de grandes rupturas e revoluções, escreve sua história na cadência de uma boa batucada.
Nesse contexto, certamente um dos nomes mais importantes dos novos artistas de samba é o da cantora baiana Mariene de Castro. A cantora vem fazendo, sem alarde, um trabalho de valorização e popularização do que há de mais importante na cultura popular, sobretudo no tradicional Samba de Roda da Bahia.

Mariene não é nenhuma novata, tem 15 anos de carreira, muitos shows, prêmios recebidos e um CD gravado. Seu excelente repertório inclui canções de tradicionais compositores baianos como Roque Ferreira (Abre Caminho e Vi mamãe na areia) e Walmir Lima (Ilha de Maré), sambas de roda do Recôncavo Baiano, Ijexás, Cocos, Cirandas e tudo mais relacionado à cultura popular.

A cantora já fez shows no exterior e em várias cidades do Brasil e participou dos DVDs de Daniela Mercury , Beth Carvalho e Samba Social Clube vol3. Porém seu trabalho mais especial é o Projeto Santo de Casa, um show semanal que já passou por vários espaços da cidade de Salvador e que atualmente é realizado no Espaço Cultural Barroquinha (uma antiga Igreja próxima ao Centro Histórico). No projeto, a cantora canta seu repertório acompanhada de uma excelente banda(pode-se ouvir a sonoridade de instrumentos tradicionais como atabaques, violas, berimbaus e acordeon), recebe convidados da música, das artes plásticas, exibe documentários, etc. Um mergulho na autêntica cultura popular.

Sua interpretação é carregada de emoção e está no mesmo nível das maiores cantoras da história do samba. Existe um DVD gravado ao vivo no Projeto Santo de Casa pronto para ser lançado.

Abaixo, o clipe de Abre Caminho (Roque Ferreira/ J. Veloso/ Mariene de Castro), gravado nas duas Festas de Largo mais importantes de Salvador, a Lavagem do Bonfim e a Festa de Iemanjá. Além disso, a versão ao vivo da mesma música e de Ilha de Maré (Walmir Lima/ Lupa), gravadas no Projeto Santo de Casa.



sábado, 13 de março de 2010

O samba como crônica (e uma pequena provocação aos puristas de plantão)

Segundo o dicionário Larrousse da Língua Portuguesa, uma crônica pode ser definida como um texto publicado sobre fatos reais ou imaginários da atualidade e como um gênero literário onde os fatos são apenas narrados, conservando-se sua ordem cronológica. Ou seja, uma crônica funciona como uma fotografia da realidade, um recorte dos fatos e acontecimentos do cotidiano.

O samba sempre foi um grande instrumento de representação da realidade. Através de uma pesquisa das letras de samba é possível compreender a história, os costumes e o jeito de ser do povo brasileiro ao longo do tempo.

Exemplos não faltam para confirmar: podemos citar a descrição do típico malandro da primeira metade do século passado feita por Wilson Batista (que passa gingando, provoca e desafia), a vida do Pequeno Burguês de Martinho da Vila que sofre para conciliar o trabalho e as responsabilidades de chefe de família com sua faculdade particular (aquela do diretor careca), o candidato Caô Caô cantado por Bezerra da Silva que subia o morro sem gravata, dizendo que gostava da massa, tomava cachaça e outras coisas mais, só para conseguir os votos da comunidade e, por fim, os tempos de hiperinflação cantados por Beth Carvalho onde um saco de dinheiro comprava apenas um quilo de feijão.

Ao pensar em uma música atual que tivesse esse perfil de crônica, lembrei-me imediatamente de Polícia e Bandido, samba-rap composto por Arlindo Cruz, Franco e Acyr Marques e cantado por Marcelo D2 e Leandro Sapucahy.

Apesar de receberem críticas severas de uma parte dos sambistas mais puristas: o primeiro (Marcelo D2) por não ser um “sambista autêntico” e ter influências de Rock, Hardcore e Rap e o segundo (Leandro Sapucahy), por ter iniciado sua carreira tocando e produzindo grupos de pagode brega como BokaLoka e Desejos, o fato é que o assunto aqui não é o valor artístico dos cantores e sim, a análise da importância do samba como crônica.

Neste quesito, “Polícia e Bandido” é um relato preciso de uma das tristes faces da realidade brasileira atual: a violência urbana e o cotidiano de quem convive diretamente com ela. A música lançou Leandro em carreira solo, tocou nas rádios de várias partes do Brasil e fez parte da trilha sonora do filme Tropa de Elite

Às vezes, uma canção nos faz compreender a realidade com mais intensidade do que a leitura do jornal diário. Às vezes, um samba nos faz pensar mais do que uma edição do Jornal Nacional.

Música: Polícia e Bandido ( Arlindo Cruz/ Franco/ Acyr Marques)

Intérpretes: Marcelo D2 e Leandro Sapucahy

quarta-feira, 3 de março de 2010

A História da Mulher de Verdade

O samba Ai, que saudades da Amélia, grande sucesso dos compositores Mário Lago e Ataulfo Alves, quase deixou de ser uma parceria. Isso porque Mário Lago ficou muito irritado quando Ataulfo cantou-lhe a música já pronta. Mário disse que o samba não era dele, pois o resultado final tinha muito pouco dos versos originais entregues a Ataulfo. O parceiro modificara tudo.

No entanto, Ataulfo Alves continuava acreditando na música e foi em busca de cantores para gravá-la. Surgiu aí mais uma dificuldade, pois os cantores procurados se recusaram a gravar “Amélia”. Foram procurados e recusaram: Cyro Monteiro, Carlos Galhardo, Orlando Silva e Moreira da Silva. Este último, chamou a composição de marcha fúnebre por conta de seu ritmo diferente dos sambas da época.

Diante das recusas e apesar da pouca experiência em gravações (só havia gravado duas músicas), Ataulfo entrou em estúdio no dia 27 de Novembro de 1941, acompanhado de Jacob do Bandolim e das vozes das pastoras e gravou Ai, que saudades da Amélia.

O samba é um dos maiores clássicos do gênero e foi consagrado no carnaval de 1942. Um dos pontos altos dessa consagração ocorreu no concurso de músicas carnavalescas, ocorrido naquele ano, no estádio do Fluminense Futebol Clube. Nesta ocasião o samba de Ataulfo e Mário Lago enfrentou, além de outras músicas, o clássico Praça Onze, parceria de Herivelto Martins e Grande Otelo que também já estava na boca do povo e teve uma grandiosa apresentação chefiada por Herivelto, com direito até a uma escola de samba no palco. Porém Ataulfo subiu ao palco e acompanhado de sua “ Academia do Samba” arrebatou a platéia tanto quanto Praça Onze. A solução encontrada pela diretoria do clube foi dobrar o prêmio e declarar o empate.

Uma curiosidade é que a personagem tema do samba de fato existiu. Amélia era uma antiga empregada da cantora Araci de Almeida e de seu irmão, o baterista Almeidinha. O baterista interrompia qualquer conversa em que o tema fosse mulher para falar da empregada. “Ah! A Amélia! Aquilo sim é que era mulher! Lavava, passava, engomava, cozinhava, apanhava e não reclamava.”

Ataulfo Alves é citado em diversos livros sobre MPB e samba, porém uma dica para quem desejar saber mais sobre a trajetória do sambista é a biografia lançada em 2009 por Sérgio Cabral; Ataulfo Alves vida e obra.

No vídeo de hoje, Ataulfo Alves Junior interpreta uma seleção de sucessos do pai: Atire a primeira pedra, Leva meu Samba e, claro, Ai, que saudades da Amélia. Disponível no Youtube.